"Elas falam demais, torram a nossa grana, mas tem o que a gente quer": Uma visão divulgada também pelo poder público

Mas se pedir a conta
Não peça a saideira
Senão alguém te canta
E vai ser só pra te comer
Só pra te comer - Velhas Virgens

Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
Deste modo ou daquele modo - Alberto Caeiro


Ainda persiste, em nossa sociedade, o senso comum de que mulheres e homens já carregam consigo, quando nascem, as características consideradas típicas do feminino e do masculino, respetivamente. Estaríamos, portanto, irremediavelmente fadados a comportar-nos e pensarmos de maneiras determinadas pela própria natureza. No entanto, a construção do feminino e do masculino é meramente social. Desde criança, somos doutrinados e moldados para cabermos com perfeição nos papéis designados pela sociedade a cada sexo, papéis estes que são valorizados e estimulados, principalmente através dos meios de comunicação. Não seguir o padrão significa estar fadado ao fracasso, ao anonimato. Em um mundo no qual só interessa ver e ser visto, perceber e ser percebido, homens e mulheres tornaram-se vítimas de seus próprios padrões, desesperados por se encaixarem nos moldes que trazem status, atenção, poder. Mas não só isso. Homens e mulheres, enxergando-se como seres diferentes, muitas vezes opostos, acabam por comparar-se, medir-se, excluir-se, e criam-se preconceitos.

Nesse sentido, três imagens da mulher são valorizadas e estimuladas hoje pela sociedade, especialmente pela mídia: a primeira, é a da mulher escultural, objeto (sexual), fonte de prazer; outra, da mulher mãe carinhosa e trabalhadora incansável, dona-de-casa impecável de filhos bem educados e executiva do alto escalão empresarial, em terninhos bem cortados, nunca se deixando abater pela dupla jornada; e, por fim, a mulher vaidosa, grandemente explorada pela indústria da beleza e da moda, que para ela estabelece padrões bastante rígidos a serem seguidos, extorquindo boa parte do dinheiro conseguido na tal dupla jornada, que para muito poucas acontece de fato no meio empresarial. Ao homem é dado o papel de chefe da família, provedor financeiro, que deve ser bom parceiro sexual, proporcionar orgasmos múltiplos a sua parceira, ao mesmo tempo que é estritamente racional e pouco se deixa comover.

Alguns desses padrões tem sido muito questionados, outros nem tanto. Mas o da mulher "objeto (sexual)" é um dos mais polêmicos. É por isso que muito espanta a iniciativa, em São Carlos, da Prefeitura Municipal, em promover, como bem visto no blog Aqui tem Cultura!, a exibição gratuita de um documentário sobre a banda Velhas Virgens no Cine São Carlos, sala de cinema histórica na cidade, hoje uma concessão pública.

Velhas virgens, auto intitulada "maior banda independente do Brasil", é vista por muitos como irreverente, na medida em que se propõe a explorar temas controversos de maneira bastante explícita e até escrachada. Reveste-se de um discurso de promoção do cenário independente na música, contra as grandes gravadoras e o capitalismo, com o qual ganha a opinião favorável de muitas pessoas, e reverbera em muitos ouvidos. No entanto, seja porque ninguém quer ver, seja porque o discurso de que o machismo já está ultrapassado está tão naturalizado que ninguém nota, parece passar desapercebido um elemento bastante presente nas letras: uma visão distorcida da mulher, principalmente no sexo, mas também na sociedade.

Isto é mais que verdade ao observar que suas composições são recheadas de elementos que reduzem as mulheres a objetos sexuais, seres interesseiros e chatos, como o trecho de Buceta que tomamos como título. Nesta mesma música, ainda se diz "Pode até ser gordinha, banguela, fedida, fudida, mas tem o que a gente quer", na qual os padrões estéticos vigentes são valorizados ao se desvalorizar as características ali elencadas. No entanto, a maior valorizada ali é a personagem título, a buceta, à qual a mulher é reduzida, uma vez que nada mais nela interessa além disso.

Em algumas músicas a mulher até ganha voz, num hipotético diálogo com o homem, o que serve apenas para confirmar as opiniões preconceituosas deste homem. Abre essas pernas parece até um roteiro dissertativo: a suposição inicial do homem é que a mulher é interesseira, pois não quer "abrir as pernas" para ele, ao que ela contra-argumenta "Eu só transo com quem eu quero; não sou bicho nem planta nem boneca pra você usar; não sou burra, nem tô a venda, nem pagando você vai me ter". Após uma oferta polpuda, no entanto, ela cede, provando a suposição inicial do homem, principalmente quando ela mesma arremata, ironicamente "Só não pense que eu sou puta, estou gostando de você". Tudo isso entremeado por frases como "Até hoje ninguém disse 'não' e a primeira não vai ser você" e "Estou te oferecendo 20 cm de prazer", que colocam o homem em uma posição superior, provedor do prazer e do dinheiro, que consegue tudo o que quer.

Alguns trabalhos da banda podem até enganar os mais desapercebidos. Seu último álbum Ninguém Beija como as Lésbicas, até parece ter um caráter de diversidade sexual, tirando o foco da sexualidade masculina. Ledo engano. Nada difere da já batida Blues de Velcro, em que um homem narra sua desventura amorosa por ter sido trocado por outra mulher: "Ve se me apresenta esta amiga E eu como você, depois como ela".

É essa a visão da mulher que está sendo divulgada pelo poder público do município de São Carlos. Talvez não diretamente através do documentário. Eu não o assisti, não me interesso em faze-lo. No entanto, ao utilizar verbas públicas para promover o nome da banda, indiretamente se promove as ideias propagadas por ela. Mais que promover, reforça, pois o dinheiro do contribuinte está sendo investido ali. Isto quando a própria Prefeitura mantém na cidade o Centro de Referência da Mulher, "(...) um equipamento da Prefeitura Municipal vinculado à divisão de Políticas para as Mulheres, da Secretaria Municipal de Assistência Social, criado com o objetivo de prevenir, promover e assegurar os direitos das mulheres.(...) Atua na atenção, acolhida e no enfrentamento às diferentes formas de violência contra as mulheres. (...)".

De forma alguma desmereço as opiniões do Velhas Virgens ou de quaisquer de seus ouvintes no que concerne o cenário independente da música ou o capitalismo. No entanto, eles não conseguem enxergar a desigualdade entre homens e mulheres como apenas mais um elemento das ideologias social e econômica dominantes. Nisso, incorrem no erro de promover suas ideias "revolucionárias" utilizando-se de um discurso que apenas reforça os princípios contra os quais eles dizem tentar lutar.



Texto por Mariana Voros Fregolente, estudante de Engenharia Ambiental na EESC-USP em São Carlos.




Centro de Referência da Mulher (CREAS)
Rua Treze de Maio 1.732, Centro - São Carlos
Tel.: (16) 3307 7799

Delegacia de Defesa da Mulher
Rua São Joaquim, 1.348, Centro
Tel.: (16) 3374 1345

Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180 (Ligação Gratuita)

10 comentários:

Nayara Borges disse...

Concordo plenamente com o texto, essas ideias estão mais que ultrapassadas e não podem subsistir no mundo atual, e é por isso que nós mulheres lutamos todos os dias.

Utilizar verba pública para tanto, é a maior piada da minha vida.

pinto disse...

Cale a boca, sua vaca.
Retorne para cozinha!

A sociedade é falocêntrica, LIDE COM ISSO! disse...

Caralho, esses depósitos de porra ao menos ASSISTEM A PORRA DO DOCUMENTÁRIO para saber o que a banda pensa na realidade e já sai falando merda aos 4 ventos.

A SOCIEDADE É FALOCÊNTRICA, LIDE COM ISSO! disse...

Auto-fix'd"...já saem falando merda aos 4 ventos."

Anônimo disse...

Mariana, aqui é o seu marido que tá falando, venha aqui pra casa fazer aquele sarapatel com arroz a grega, que você me prometeu. Beijos.

Anônimo disse...

Uma boa opção de matéria é o fórum conhecido como 55chan.org/b
Nesse local todos são anônimos, mas o nível de machismo é absurdo ao ponto de qualquer mulher que se manifeste é sumariamente banida do recinto. Se algum homem discorda das opniões misógenas e machistas apresentadas no site, ele é taxado de mulher e também sumariamente punido. Chegam ao ponto de chamarem as mulheres de "depósito de porra".

Gostaria que o site visse e fizesse uma matéria alertando contra esse tipo de machismo ainda vigente.

Anônimo disse...

talvez, mas só talvez, seja por isso que eles são considerados uma banda humorística... mas vejo bem, isso é só a opinião de um homem, mas é claro, como sou homem você vai ignorar a minha opinião.
Aliás, minha namorada escuta bastante velhas virgens e não segue o modelo de garota proposta por eles...

Anônimo disse...

Mas o que um computador está fazendo na cozinha?

Sarah Segalla disse...

Este texto foi postado há muito, mas só hoje pude lê-lo. Posso ter chegado tarde, mas quero tecer alguns comentários (úteis, não como muitos que aí estão).

Entendo que muitas pessoas ouvem a banda e nem por isso se consideram machistas. Mas o que está colocado é a questão da propagação de valores excludentes, discriminatórios, que ocorre em muitos, quicá todos os aspectos da nossa sociedade [capitalista].

Quando concordamos com a propagação de um valor desses, estamos sendo coniventes com a influência que ele gera na formação de uma mentalidade, que não é tão bem formada ideologicamente em todos, somos sempre suscetíveis.

Gostei bastante do texto, parabéns, Mariana!

Fer disse...

Penso que uma das piores formas de discriminação, no Brasil, seja o humor. O discurso da piada é sutil, com aspecto descompromissado, sem seriedade, de modo que o machismo e o racismo, passem desapercebidos e, sobretudo, sejam reproduzidos e auxiliem na reprodução da ordem vigente. E essa mesma sutileza discreta das brincadeiras, possui um caráter de extrema violência, dirão psicológica ou social, mas é também manifestação institucional (ilustra-nos o exemplo da prefeitura de São Carlos). O que é mais preocupante acerca da questão é a “inocência” dos homens e dos brancos na propagação de tais ideias, entre aspas porque só pode ser irônico chamá-los de inocentes.
Por outro lado, as mulheres cada vez ganham mais poder e legitimidade pela sua resistência à dominação masculina , resistência essa que, ao contrário co comumente pensado, surge não a apenas uns 60 anos, mas talvez 10.000 anos, ou muito mais, desde que o homem institui a sua ordem à sociedade (ordem essa que é sempre validada pelos mitos), mas no discurso geral, a mulher ainda é o bode expiatório. Quem duvide pode arreparar no exemplo dos palavrões mais comumente vigentes, “vai tomar no cu”, “filho da puta”, “viado”... e por aí vai, todos apresentando, em comum, uma conotação depreciativa ao feminino.
Segue-se esse desenrolar de modo que temos hoje uma mulher ao criticar uma banda que é dogma masculino, inquestionável, e por conseguinte, criticar a supremacia do pau e reduzi-lo, recebe tanto carinho masculino nos comentários, por que os homens não aceitam a mudança, que implica na perda de poder. Assim, como já é sabido há muito, as mudanças não podem vir de quem está do lado cômodo.